PARABOLA DOS TALENTOS

O que fizeste dos teus talentos?

Arrumei a roupa no armário,
pus canela no dorso do peixe,
deixei-me ficar à mesa depois do almoço
à conversa com a família.
O meu pai afunda-se na memória
que lhe nega o leito.
Mas duplicou e acariciou sempre os talentos
com os dedos febris e todos os minutos.
Passeio de rua em rua,
as árvores vertem-se no alcatrão.
Mais cedo ou mais tarde as folhas
acabarão por ser varridas do passeio.
Chamemos vento a esta desaparição.
Continuemos a dar nomes a tudo
o que perdemos em nome das palavras.

O que fizeste?
Passeei e esqueci-me.
Fui buscar a minha mãe a um sítio qualquer.
Entrou no carro: um apeadeiro
para entrar na minha infância
com a porta travada.
A água do mar corre pela sala
e quando a maré enche
deslizo pelo corredor até à cama.
As gaivotas mantêm-se à distância
porque eu não sou um peixe ofegante
nesta cidade que desabriga.

O que fizeste dos teus talentos?
Ao domingo os bancos estão fechados
e eu não tenho pá.
E tu, que fizeste dos talentos da tua mãe
quando a dor lhe sofria o chão
que rastejaste até ao calvário?
Todos os dias ela pergunta:
Estás morto?
E eu digo: levanta-te,
ainda não acabaste os teus talentos:
estamos todos podres
e só duplicámos as dúvidas.