Desmantelar certezas

Agora é difícil mentir, acreditar
que as palavras possam não arder.
Foram demasiados incêndios
que passaram de século a século.
Vê como se assemelham os seus rostos,
o rasto de fuligem que os desfigura
é um cometa fugidio, mas nós sabemos
que algumas palavras passaram através do fogo,
mais magras do que os corpos, mais dúplices,
cheias de sentidos cobrindo mil cores
e mais mil ainda por abrir. Quantas vezes
a serva escolheu a quem servir?
E no chão sempre o mesmo sangue,
sempre os mesmos olhos a desmantelar
certezas. Já não podemos acreditar
que as palavras não desfiguram corpos,
não ateiam. É tarde e as palavras que nos vestem
estão cansadas. É tarde desde Abel,
desde o paraíso. E neste fim de tarde
alguém, em qualquer parte, escreve uma palavra
que ainda não foi escrita, uma palavra leve
ferindo os temporais e embora seja tarde
é também cedo e o amanhã começa
com esta palavra a caminho do seu pó.

In Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)