Obra-Prima

Quando a tua mão acaricia a minha perna
os sensores da pele desencadeiam reacções sentimentais
e às vezes chego a ter uma reacção motora. O ângulo
da perna, a inclinação do pé - maravilhas-te com a paisagem
ocasional: depois da curva da estrada estabilizas o olhar
na curva do joelho. Os olhos impacientam-se em sacudidelas
invisíveis mas o espelho reflecte apenas imobilidade.
A sandália: o teu olhar vai do joelho à nudez do pé. Este pé
que calcorreia as ruas é também objecto de desejo: o pé
que calca o travão a fundo. Sei que vais beijar-me - talvez
nem tu saibas que a postura do teu corpo tem o formato
de beijo. A carícia necessita de um controlo minucioso,
da pressão exacta para que não me esmagues a rótula.
O contacto é doce na pele que te ofereço, a carícia
é a obra-prima da engenharia mecânica. Olho a baía
onde se reflectem os néons da noite e deixo o corpo
trabalhar à vontade. Depois adormeço com a tua mão
na minha perna e a vaga consciência de que o paraíso
se estende da ponta dos pés até ao cimo da cabeça.

In Da Alma e dos Espíritos Animais (2001)