Cinco poemas de Viagem de inverno

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Um salto de raposa sobre a estrada
último sol à beira da fronteira.
Depois somente a sombra
duma lua diurna
a câmara dos ecos
e círculos de corvos sobre a neve.

Viagem de inverno
metáfora fechada deslizando
em espelho opaco
gotícula de sémen
pulsando sobre pele infecundada
contexto desconexo

viagem literalmente de inverno
literalmente viagem
por estradas escorrendo rios turvos
nas ondas congeladas das montanhas
com troncos encravados
mastros brancos de frotas soterradas

até que muito ao Leste
o hotel aberto
vazio e duvidoso
galo campestre em luxo desplumado
e onde o chefe já perdera a estrela
por exagero de maçã nos molhos.

Paguei a conta da viagem grátis
anos depois
a prestações com juros agravados
quando era já difícil recordar
para onde vim
e ao que vinha quando aqui cheguei.

Não sobra nunca muito a quem só chega
nem o regresso
que seria outro chegar ao não-lugar
que só existe no se ter deixado
e assim ficou
como um jardim coberto em selva escura.

Tenho ainda o recibo e a mala velha onde trazia
o guia de turismo traduzido
da língua original que já esqueci
ou nunca soube
noutra língua também desconhecida.

O laranjal coberto de limões

no corpo suculento da memória
os sulcos desgastados do inverno

no areal perene das marés músculos frouxos celulite veias

em ti amor em ti no que nós somos
o incenso e a mirra do desejo

a erecção precária e persistente
nos lábios das entranhas do luar

a noite a luz a sombra a madrugada.

Fui ver e era mesmo uma raposa
como a outra que atravessou a estrada
aguardando deitada na varanda
onde o gato capado dorme os dias
indiferente à vida libertária
em bocejos de carnes enlatadas.

Se a raposa chamava tinha de ir
dei ao gato a ração obrigatória
e a varanda era a selva a rua o mar
a raposa vermelha um autocarro
dos que não chegam nunca ou já passaram
e exigem sempre o pagamento exacto.

Donde parece que a moral da história
ficou suspensa entre raposa e gato
num protesto aos transportes colectivos
quando afinal a rua extravasou
a selva é sem regresso e sem saída
e todo o viajante é solitário.

Eu sabia por ela as estações
os esquilos os corvos as gaivotas.
Chegada a primavera abria os nós
em flores precipitadas e carnudas
de longas redondezas tacteantes
que batiam no vidro da janela.
Não dava fruto a minha castanheira
e na verdade não era sequer minha
ou só seria porque nos olhámos
cada manhã por mais de trinta anos.
Mas dava flores e esquilos e gaivotas
verão outono corvos primavera
sem contabilidades biológicas
doutras fertilidades transmissíveis.
Dava flores como se desse versos
sem precisar por isso de escrevê-los
como os amantes se amam num só corpo
sem ver onde um começa e o outro acaba
aberta toda em lábios vaginais
com uterinos longos falos brancos.
Também este ano floriu no tempo certo.
Mas o inverno chegou em plenas maias.
Disseram que a raiz rachou ao meio
que o centro do seu tronco estava oco
não percebiam como tinha flores.
Cortaram membro a membro a minha árvore
ficou só a raiz e o seu vazio
e sobre o campo em volta a neve quente
das suas flores perplexas
impossíveis.

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